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terça-feira, 8 de março de 2011

No fim, levarei tua alma

No fim, levarei tua alma

Jogadores do Atlético Carazinho após gol sofrido na campanha de 2010. Clube é um dos favoritos ao rebaixamento à Terceirona neste ano.
Anuncio de cara para não ser considerado herege: começarei citando um exemplo da Primeira Divisão. Prometo que logo enredo pela Segundona e até vou além. Acompanhem-me sem medo, os fios soltos logo se juntam.
Numa noite do início de fevereiro, pelo Gauchão, o São Luiz recebeu o Grêmio em Ijuí. Os jogos contra a Dupla Gre-Nal, tu sabes, são a maior razão da sobrevivência do Estadual e formam a esperança de cada clube menor quanto a uma renda que permita equilibrar as contas. Indiretamente, a ilusão de um dia ter um jogo desta magnitude diante de si também move as torcidas na Segundona. É muito mais que a bilheteria: a cidade e a equipe local ganham divulgação, a venda de camisas aumenta, a Copa se torna uma fonte de reais onde quase é possível ouvir aquele barulho de caixa registradora a cada garrafa esvaziada – e ainda há uma chance de fazer história.
Também é, no entanto, o jogo dos aproveitadores. Em Ijuí, cidadãos de respeito mas pouco assíduos à cancha congestionavam as linhas telefônicas do clube pedindo entradas grátis para familiares e amigos. Reclamavam diante das negativas com injúria, embora provavelmente fossem pisar no estádio para torcer pelo Grêmio. Um pouco abaixo das cadeiras cobiçadas por estes, nas arquibancadas apareciam uns forasteiros carregando grandes isopores com litros e litros de refrigerante, oferecendo as bebidas para saciar a sede do público calorento. Eram vendedores clandestinos. Enquanto Mário Fernandes puxava um ataque do Grêmio, via-se o presidente do São Luiz, Sadi Pereira, correr escada abaixo para acionar o policiamento e acabar com a irregularidade.
O medo do time ijuiense de perder uns cobres para um par de mal-intencionados é apenas uma faceta da realidade inquestionável que se abate sobre quase todo o interior. Mesmo na Primeira, onde as cotas de participação são absurdamente maiores que na Segundona, os pequenos periclitam. Dívidas antigas assombram. Em Santa Maria, o Inter antecipou verbas até onde pôde. É, junto com o São Luiz, um dos quatro clubes mais cotados para cair. Os outros são Santa Cruz e Porto Alegre, e apenas este, que é da Capital, não tem torcida e é bancado pela família Assis, pode se considerar tranquilo em termos financeiros. Talvez o irmão de Ronaldinho não tenha recebido ligações avisando da situação do time para fazer algo, talvez ele simplesmente não se importe.
Pois bem. Vamos à Segundona, onde é mais fácil tingir uma camisa de sangue do que colocar nela o nome de um patrocinador. Neste ano, a FGF concedeu algumas migalhas aos clubes – um apoio na confecção do material esportivo e trinta mil reais por conta da Claro. Na reunião que definiu o regulamento de 2011, pode ser que o agrado da Federação tenha pesado para a ideia da recriação da Terceirona passar. Decidiram que ela voltaria e não houve mais tranquilidade no sul do mundo. Presidentes de clubes acostumados a entrar apenas pela vontade de ver o time atuando agora tinham que correr meio desesperados atrás de contratações mais caras do que o habitual.
A preocupação tirou o sono de dirigentes nas manhãs em que seus elencos despertavam bem cedo para mais uma bateria de treinamentos da pré-temporada, e aquele parecia ser o único aspecto positivo da volta do terceiro escalão: os clubes mais fracos deveriam se obrigar a entrar para disputar algo. Tiraria o comodismo, diziam alguns. Esta, entretanto, é apenas a visão tida desde o plano dos acontecimentos imediatos – que não passa de uma ilusão na qual as coisas muito erradas parecem decentes. Mesmo o mais abnegado dirigente cuja solitária intenção reside em observar a equipe de seus amores jogar simplesmente, sem ambições maiores, não monta um time fraco por desleixo.
Em certos casos pode haver incompetência, de fato, mas equipe alguma desempenha de propósito um papel como, por exemplo, o do Atlético Carazinho. Os carazinhenses estiveram entre os lanternas das duas Segundonas e das duas Copinhas que disputaram desde a retomada de seu futebol por sofrerem do mesmíssimo problema que atormenta noventa por cento dos clubes do campeonato – a falta de recursos. Não é raro ouvir relatos de dirigentes que, com alguma ingenuidade, acreditaram em patrocínios regionais para manter a equipe e terminaram precisando tirar do próprio bolso para pagar os salários do elenco.
Quiçá Brasil de Farroupilha, com os investimentos recentes, Brasil de Pelotas, que apesar de endividado sempre terá sua torcida gigante e mais destaque midiático que qualquer outro interiorano, e União Frederiquense, sustentada pelo ânimo da novidade que costuma motivar a comunidade e o empresariado no início, sofram um pouco menos. Fora eles, restam casos escassos. Os demais clubes do interior têm contas vencidas e poucas alternativas para obter receitas – na elite e na Segundona. Há espaço para a Terceirona? Não da maneira como o futebol gaúcho tem sido levado.
Se o teu clube tem dificuldades para se aguentar em pé, o rebaixamento de 2011 pode significar o sumiço dele por um bom tempo. O interior não tem estrutura para mais um nível abaixo. Não à toa, o Gauchão deste ano é aquele com menor proporção de interioranos desde 1962 – apenas nove das dezesseis equipes são de fora da Região Metropolitana. A Terceira Divisão serve muito provavelmente àqueles que sonham em fazer dinheiro num cenário como São Paulo, onde a falência dos clubes tradicionais possibilitou que equipes de empresários – ou encampadas por eles – pegassem o vácuo dos clubes históricos caídos. Muitos deles têm centros de treinamento e estádios melhores que os nossos. Mas, lá, todas as arquibancadas são vazias.
Criar divisões inferiores é artifício para quem tem um mundo de equipes estruturadas e pouco lugar para elas. Nós temos tudo por fazer – e não devemos sonhar com clubes de empresário. A Terceira Divisão, no Rio Grande, é um calabouço condenado a durar poucos anos, como já foi no passado. Não trará motivações para os envolvidos nela. É, muito mais – e isto parece evidente – uma opção da FGF para enxugar a Segundona e tentar torná-la mais lucrativa para quem ficar ali. Só que isto às custas de um método que deliberadamente provocará o fechamento de muitas equipes menores, sem qualquer condição de se manter no inferno.
É como se a FGF gritasse para estes times que tanto incomodam uma frase que se ouve numa música do cantor argentino Piero: “que se vayan ellos”. Que eles vão embora de uma vez, clama o regulamento da Segundona 2011. Na música, porém, a sequência acaba revelando a combinação: “que se vayan ellos (...) / los que te mataron”. Que alguém vá embora, sim, mas que sejam os responsáveis pela nova Terceirona – logo mais culpados pela morte de outra parcela do interior.

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