No futebol de Passo Fundo, Ele era a lei
Não era fácil jogar em Passo Fundo, Pelotas e Bagé. Virava uma guerra. São histórias que você vai conhecer aqui, de hoje até a próxima terça-feira na série de reportagens O tempo em que havia guerra
MÁRIO MARCOS DE SOUZA
Dura mesmo era a vida dos atacantes naqueles anos 60/70. Eles sabiam que no fim da RS-153, depois de cruzar por campos cobertos de soja, estava Passo Fundo - e lá, à espera deles, sem disposição para mesuras com visitantes, estariam os irmãos Pontes, João (E, na foto) e o mais velho, Daison, uma feroz dupla de centrais. Em campo, todos entendiam por que Daison repetia que para ser campeão um time precisava passar por Passo Fundo. Hoje, a vida parece mais fácil para os atacantes. Jogar em Passo Fundo, na era dos Pontes, era um teste de coragem. - A gente só não admitia desrespeito - lembra o hoje aposentado municipal Daison Pontes, 67 anos, já sem os cabelos longos de antes, mas com uma forma física que nem de longe lembra a idade.
Desrespeito, no mundo dos Pontes, podia ser um olhar, um sorriso na hora errada, firulas ou uma cuspida, como o atacante Nestor Scotta ousou dar em um jogo Grêmio e Gaúcho. Argentino, habituado a batalhas em seu país, Scotta entendeu no fim do jogo que complicado mesmo era jogar em Passo Fundo. - Eu disse 'vamos conversar daqui a pouco' e o segui por todo o campo. Não apenas seguiu. Scotta nunca mais esqueceria aquela violenta dor nas costas provocada por uma joelhada. Foi assim com muitos que violaram a lei dos irmãos. Alguns, habilmente, faziam questão de uma boa relação com Daison. João Severiano era assim. Outros mantinham um combate duro, mas leal. Batiam e apanhavam em silêncio, como fazia Juarez, o Tanque - até o dia em que foi jogado contra o muro. Aí, protestou. "Você quer me machucar?", perguntou àquele outro muro que estava de pé, diante dele. Quem vai à cidade entende bem por que Daison, nascido em General Câmara, ficou tão identificado com Passo Fundo. Os torcedores nunca viram nele apenas um zagueiro violento, mas alguém que não suportava perder. Para isso, lutava sempre, às vezes dando broncas no próprio irmão (cinco anos mais jovem, falecido em 2005), mesmo correndo o risco de ir além de um certo limite. Foi expulso 18 vezes e, em uma delas, condenado a ficar um ano e seis meses fora do futebol por agredir o árbitro José Luiz Barreto em 1974, em um jogo em Santa Maria, ao discordar da marcação de um pênalti. - Era a minha lei. O jogador tinha de ser o mesmo em casa e fora. No dia da agressão em Santa Maria, precisou arrombar a porta do vestiário, correr pela rua, atravessar um cemitério e esperar pelos amigos para não ser preso em flagrante antes de voltar a Passo Fundo. Foi saudado como herói por companheiros e torcedores. Este foi o Daison que virou mito, lembrado muito mais pela raça, mas havia também o outro lado, o do grande zagueiro. - O Foguinho (Oswaldo Rolla, antigo treinador) sempre me dizia: se o Daison tivesse a cabeça do Calvet (zagueiro nascido em Bagé que chegou à Seleção), seria o melhor zagueiro do Brasil - lembra Armando Rebecchi, atual técnico do Gaúcho.Daison sabe que tinha talento, como dizia Foguinho. Abre uma Revista do Esporte de 1963, sobre o sofá azul da casa da filha mais velha, onde mora, e mostra a foto de sua chegada ao Flamengo, espalha dezenas de imagens antigas, lembra das viagens e fala com orgulho dos filhos Denise (do primeiro casamento), com quem está morando, Manoela, de 21, Michele, de 16, Dealeon, de 25 anos - que esperava ver dar seqüência à linhagem de zagueiros, mas que preferiu o vôlei - e do casal de netos. Olha de novo para as fotos, aponta para uma do Inter de 1975, diz que Bibiano, o mais jovem dos três irmãos Pontes, foi melhor do que Figueroa, e destaca: - Não fiquei rico, mas ganhei o suficiente para não precisar pedir favor a ninguém. Passo Fundo sempre respeitou um caráter assim, pouco afeito a concessões, que aprendeu a admirar nos 10 anos do zagueiro no Gaúcho, de 1965 até parar.
Basta circular pela cidade para perceber. Duas vezes por dia, de manhã e no fim da tarde, Daison liga seu Opala 1987 verde-escuro e vai ao Centro. Estaciona na Avenida Assis Brasil, que corta a cidade e, de bermuda, camiseta e chinelo de dedo, começa a caminhada em direção à Lotérica Jordania, de seu amigo turco Zuair Mahmud, situada bem em frente à estátua de Teixeirinha. É um ritual, ele não pode ficar sem a conversa diária com os amigos. No caminho, como ocorreu na última terça-feira de muito sol em Passo Fundo, foi chamado, entrou nas lojas, motoristas buzinaram, pararam a seu lado para uma saudação ou uma brincadeira. Daison sorria orgulhoso. É a saudade da torcida que bate forte. Ela sabe que um Daison no time de hoje já faria diferença - ao menos para deixar a vida dos atacantes um pouco mais complicada.
( mario.souza@zerohora.com.br )
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Os velhos tempos
De arma em campo
Garante o advogado e jornalista Meirelles Duarte, 70 anos, mais de meio século na imprensa de Passo Fundo, que foi bem assim: em um jogo entre Grêmio e Gaúcho, no Volmar Salton, nos anos 70, a torcida protestou por uma decisão do árbitro contra o atacante Bebeto, ídolo da terra. Ao ouvir isso, o pai do jogador, ex-delegado, que ia sempre armado aos estádios, apesar de enxergar muito mal, ergueu-se e decidiu invadir o campo. Ao passar pelo goleiro gremista Arlindo e ver aquele vulto vestido de preto, como o árbitro, o pai de Bebeto não teve dúvidas - era ele.- Foi uma gritaria danada até convencê-lo de que aquele era o assustado Arlindo e não o árbitro - diverte-se Meirelles.
As camisas sumiram
Estava tudo preparado para o jogo de inauguração do Estádio Volmar Salton, dia 24 de agosto de 1957, pelo centenário de Passo Fundo. Na véspera, os dirigentes foram ao desespero: todas as camisetas do time tinham sumido. Em meio à correria, alguém lembrou-se de pedir ajuda à família Ughini, fabricante de roupas. A empresa convocou então seis costureiras que, em regime integral, produziram novas camisas. No dia seguinte, estava tudo bem exceto por um detalhe: as camisas eram estilo social, com uma abertura fechada por botões. Deu para jogar, pelo menos.Carne à vontadeOs tempos são diferentes não só no confronto entre Interior e Capital, mas também na vida dos jogadores. Daison Pontes lembra que boa parte da motivação dos times se devia a uma característica da época: os prêmios eram muito maiores do que os salários. Nem sempre eles recebiam em dinheiro, mas em produtos que garantiam conforto e tranqüilidade das famílias.- Às vezes, um torcedor abonado prometia 10 quilos de carne, por exemplo - lembra Daison. - Você já imaginou quantos dias duravam uma quantidade assim de carne?
Mira Bebeto
Além da ferocidade dos seus dois centrais, os irmãos Daison e João, o Gaúcho era temido por outro detalhe: os chutes potentes do centroavante Bebeto, o Canhão da Serra. E poucos goleiros pareciam temer mais isso do que o goleiro argentino Cejas, que jogou no Grêmio na década de 70. Em certo jogo em Passo Fundo, Cejas passou o tempo todo gritando:- Mira Bebeto, mira Bebeto.A torcida ouviu e, aos risos, passou a repetir "mira Bebeto, mira Bebeto". A partir dali, sempre que Cejas jogava em Passo Fundo, tinha de ouvir o coro.As pedras de MeirellesO jornalista Meirelles Duarte detém informações e histórias sobre as últimas décadas do futebol gaúcho, especialmente de Passo Fundo - e não faz segredo delas, que ele revela para amigos, curiosos e na coluna Memórias do Esporte, nas páginas do jornal O Nacional. Mas as histórias dele? Há muitas, em qualquer rodinha de torcedores. Uma delas: um dia, em meio à narração, Meirelles desviou sua atenção para uma briga entre torcedores. Ao falar sobre o assunto para seus ouvintes, do alto de sua grande audiência, ele destacou:- Ainda bem que não perceberam aquele monte de entulhos atrás deles.Daison Pontes, ao falar sobre a carreira de zagueiro:“Não fiquei rico, mas ganhei o suficiente para não pedir favor a ninguém”
Não era fácil jogar em Passo Fundo, Pelotas e Bagé. Virava uma guerra. São histórias que você vai conhecer aqui, de hoje até a próxima terça-feira na série de reportagens O tempo em que havia guerra
MÁRIO MARCOS DE SOUZA
Dura mesmo era a vida dos atacantes naqueles anos 60/70. Eles sabiam que no fim da RS-153, depois de cruzar por campos cobertos de soja, estava Passo Fundo - e lá, à espera deles, sem disposição para mesuras com visitantes, estariam os irmãos Pontes, João (E, na foto) e o mais velho, Daison, uma feroz dupla de centrais. Em campo, todos entendiam por que Daison repetia que para ser campeão um time precisava passar por Passo Fundo. Hoje, a vida parece mais fácil para os atacantes. Jogar em Passo Fundo, na era dos Pontes, era um teste de coragem. - A gente só não admitia desrespeito - lembra o hoje aposentado municipal Daison Pontes, 67 anos, já sem os cabelos longos de antes, mas com uma forma física que nem de longe lembra a idade.
Desrespeito, no mundo dos Pontes, podia ser um olhar, um sorriso na hora errada, firulas ou uma cuspida, como o atacante Nestor Scotta ousou dar em um jogo Grêmio e Gaúcho. Argentino, habituado a batalhas em seu país, Scotta entendeu no fim do jogo que complicado mesmo era jogar em Passo Fundo. - Eu disse 'vamos conversar daqui a pouco' e o segui por todo o campo. Não apenas seguiu. Scotta nunca mais esqueceria aquela violenta dor nas costas provocada por uma joelhada. Foi assim com muitos que violaram a lei dos irmãos. Alguns, habilmente, faziam questão de uma boa relação com Daison. João Severiano era assim. Outros mantinham um combate duro, mas leal. Batiam e apanhavam em silêncio, como fazia Juarez, o Tanque - até o dia em que foi jogado contra o muro. Aí, protestou. "Você quer me machucar?", perguntou àquele outro muro que estava de pé, diante dele. Quem vai à cidade entende bem por que Daison, nascido em General Câmara, ficou tão identificado com Passo Fundo. Os torcedores nunca viram nele apenas um zagueiro violento, mas alguém que não suportava perder. Para isso, lutava sempre, às vezes dando broncas no próprio irmão (cinco anos mais jovem, falecido em 2005), mesmo correndo o risco de ir além de um certo limite. Foi expulso 18 vezes e, em uma delas, condenado a ficar um ano e seis meses fora do futebol por agredir o árbitro José Luiz Barreto em 1974, em um jogo em Santa Maria, ao discordar da marcação de um pênalti. - Era a minha lei. O jogador tinha de ser o mesmo em casa e fora. No dia da agressão em Santa Maria, precisou arrombar a porta do vestiário, correr pela rua, atravessar um cemitério e esperar pelos amigos para não ser preso em flagrante antes de voltar a Passo Fundo. Foi saudado como herói por companheiros e torcedores. Este foi o Daison que virou mito, lembrado muito mais pela raça, mas havia também o outro lado, o do grande zagueiro. - O Foguinho (Oswaldo Rolla, antigo treinador) sempre me dizia: se o Daison tivesse a cabeça do Calvet (zagueiro nascido em Bagé que chegou à Seleção), seria o melhor zagueiro do Brasil - lembra Armando Rebecchi, atual técnico do Gaúcho.Daison sabe que tinha talento, como dizia Foguinho. Abre uma Revista do Esporte de 1963, sobre o sofá azul da casa da filha mais velha, onde mora, e mostra a foto de sua chegada ao Flamengo, espalha dezenas de imagens antigas, lembra das viagens e fala com orgulho dos filhos Denise (do primeiro casamento), com quem está morando, Manoela, de 21, Michele, de 16, Dealeon, de 25 anos - que esperava ver dar seqüência à linhagem de zagueiros, mas que preferiu o vôlei - e do casal de netos. Olha de novo para as fotos, aponta para uma do Inter de 1975, diz que Bibiano, o mais jovem dos três irmãos Pontes, foi melhor do que Figueroa, e destaca: - Não fiquei rico, mas ganhei o suficiente para não precisar pedir favor a ninguém. Passo Fundo sempre respeitou um caráter assim, pouco afeito a concessões, que aprendeu a admirar nos 10 anos do zagueiro no Gaúcho, de 1965 até parar.
Basta circular pela cidade para perceber. Duas vezes por dia, de manhã e no fim da tarde, Daison liga seu Opala 1987 verde-escuro e vai ao Centro. Estaciona na Avenida Assis Brasil, que corta a cidade e, de bermuda, camiseta e chinelo de dedo, começa a caminhada em direção à Lotérica Jordania, de seu amigo turco Zuair Mahmud, situada bem em frente à estátua de Teixeirinha. É um ritual, ele não pode ficar sem a conversa diária com os amigos. No caminho, como ocorreu na última terça-feira de muito sol em Passo Fundo, foi chamado, entrou nas lojas, motoristas buzinaram, pararam a seu lado para uma saudação ou uma brincadeira. Daison sorria orgulhoso. É a saudade da torcida que bate forte. Ela sabe que um Daison no time de hoje já faria diferença - ao menos para deixar a vida dos atacantes um pouco mais complicada.
( mario.souza@zerohora.com.br )
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Os velhos tempos
De arma em campo
Garante o advogado e jornalista Meirelles Duarte, 70 anos, mais de meio século na imprensa de Passo Fundo, que foi bem assim: em um jogo entre Grêmio e Gaúcho, no Volmar Salton, nos anos 70, a torcida protestou por uma decisão do árbitro contra o atacante Bebeto, ídolo da terra. Ao ouvir isso, o pai do jogador, ex-delegado, que ia sempre armado aos estádios, apesar de enxergar muito mal, ergueu-se e decidiu invadir o campo. Ao passar pelo goleiro gremista Arlindo e ver aquele vulto vestido de preto, como o árbitro, o pai de Bebeto não teve dúvidas - era ele.- Foi uma gritaria danada até convencê-lo de que aquele era o assustado Arlindo e não o árbitro - diverte-se Meirelles.
As camisas sumiram
Estava tudo preparado para o jogo de inauguração do Estádio Volmar Salton, dia 24 de agosto de 1957, pelo centenário de Passo Fundo. Na véspera, os dirigentes foram ao desespero: todas as camisetas do time tinham sumido. Em meio à correria, alguém lembrou-se de pedir ajuda à família Ughini, fabricante de roupas. A empresa convocou então seis costureiras que, em regime integral, produziram novas camisas. No dia seguinte, estava tudo bem exceto por um detalhe: as camisas eram estilo social, com uma abertura fechada por botões. Deu para jogar, pelo menos.Carne à vontadeOs tempos são diferentes não só no confronto entre Interior e Capital, mas também na vida dos jogadores. Daison Pontes lembra que boa parte da motivação dos times se devia a uma característica da época: os prêmios eram muito maiores do que os salários. Nem sempre eles recebiam em dinheiro, mas em produtos que garantiam conforto e tranqüilidade das famílias.- Às vezes, um torcedor abonado prometia 10 quilos de carne, por exemplo - lembra Daison. - Você já imaginou quantos dias duravam uma quantidade assim de carne?
Mira Bebeto
Além da ferocidade dos seus dois centrais, os irmãos Daison e João, o Gaúcho era temido por outro detalhe: os chutes potentes do centroavante Bebeto, o Canhão da Serra. E poucos goleiros pareciam temer mais isso do que o goleiro argentino Cejas, que jogou no Grêmio na década de 70. Em certo jogo em Passo Fundo, Cejas passou o tempo todo gritando:- Mira Bebeto, mira Bebeto.A torcida ouviu e, aos risos, passou a repetir "mira Bebeto, mira Bebeto". A partir dali, sempre que Cejas jogava em Passo Fundo, tinha de ouvir o coro.As pedras de MeirellesO jornalista Meirelles Duarte detém informações e histórias sobre as últimas décadas do futebol gaúcho, especialmente de Passo Fundo - e não faz segredo delas, que ele revela para amigos, curiosos e na coluna Memórias do Esporte, nas páginas do jornal O Nacional. Mas as histórias dele? Há muitas, em qualquer rodinha de torcedores. Uma delas: um dia, em meio à narração, Meirelles desviou sua atenção para uma briga entre torcedores. Ao falar sobre o assunto para seus ouvintes, do alto de sua grande audiência, ele destacou:- Ainda bem que não perceberam aquele monte de entulhos atrás deles.Daison Pontes, ao falar sobre a carreira de zagueiro:“Não fiquei rico, mas ganhei o suficiente para não pedir favor a ninguém”
Publicado em 21/01/2007 no Jornal Zero Hora (Porto Alegre-RS)
Autor: Mário Marcos de Souza
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Fotos: Jornal Zero Hora
Fotos: Jornal Zero Hora
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